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Desenvolvimento motor: muito além dos marcos motores

Por muito tempo acreditei que compreender o desenvolvimento motor limitava-se apenas aos marcos motores (segurar a cabeça, rolar, sentar, ficar em pé e assim por diante). No entanto, após todo o meu processo de doutoramento, modifiquei a minha visão sobre o desenvolvimento motor ser um produto pré-determinado e universal da maturação do Sistema Nervoso Central (SNC) para observá-lo como um processo que ocorre ao longo de toda vida, complexo, flexível e multifatorial.

Infelizmente, muitos profissionais da fisioterapia ainda acreditam que o desenvolvimento motor só ocorre pela maturação do SNC, provavelmente, isso ocorre por forte influência dos estudos do médico pediatra Arnoldo Gesell que elaborou uma das primeiras teorias, a teoria maturacional, sobre o desenvolvimento motor após extensas observações sobre comportamentos motores de bebês e as modificações que ocorrem nos primeiros meses de vida1. Pesquisadores e pesquisadoras maturacionais alegavam que todas as mudanças que ocorrem nos primeiros meses de vida de um bebê são resultado de mudanças nas estruturas neurais1, iniciando com comportamentos primitivos e desorganizados para processos mais elaborados e organizados até adquirir a postura ereta2,3. No entanto, se todo novo comportamento é dependente da maturação do SNC, se isso é uma verdade absoluta, modificar o ambiente que uma criança vive não adianta de nada, ou propor tarefas como são realizadas em sessões de fisioterapia também não ocasionaria nenhuma mudança na trajetória de desenvolvimento de uma criança, afinal, segundo a teoria maturacional, tudo depende do amadurecimento do SNC. Caso uma pessoa tenha lesão no SNC, ela está fadada ao “não desenvolvimento”. Se uma pessoa tem uma doença progressiva que acomete o SNC, seu desenvolvimento será visto apenas como um processo de regressão. Nestes dois últimos casos, tanto faz realizar modificações no ambiente que uma criança vive ou propor diferentes tarefas no cotidiano, pois esse desenvolvimento não pode ser modificado.

Felizmente, desde 1970, Kevin Connolly e outros pesquisadores rejeitaram a ideia rígida sobre o desenvolvimento motor para uma proposta mais flexível4, um processo de desdobramentos dirigido por forças intrínsecas (fatores genéticos) e extrínsecos (contexto ambiental e da tarefa)5,6. Novas teorias surgem a partir dessa nova perspectiva, como a teoria dos Sistemas Dinâmicos ou Teoria Dinâmica. Como o próprio nome diz, o desenvolvimento é visto com um processo dinâmico em que ocorre a “interação múltipla, mútua e contínua de todos os níveis do sistema em desenvolvimento, do molecular ao cultural”7, isso significa que as características biológicas de uma pessoa, o contexto que ela vive e tudo que se propõem ou tem oportunidade de realizar em sua vida, pode influenciar no curso do desenvolvimento motor. Desta forma, existe uma flexibilidade sobre o curso do desenvolvimento, pois diferentes fatores podem interferir nessa trajetória. Na perspectiva dinâmica, não existe uma universalidade de padrões de desenvolvimento, mas a probabilidade de alguns comportamentos ocorrerem de forma mais frequente do que outros, pois pessoas podem variar um mesmo comportamento motor de diferentes maneiras, por exemplo, nem todas as pessoas se locomovem da mesma forma8,9.

É importante destacar e reforçar que teóricos maturacionais fizeram importantes contribuições, principalmente, sobre descrições bastante detalhas de comportamentos motores da primeira infância que deram origem a diversos instrumentos de avaliação e acompanhamento, como a escala de Nancy Bayley, amplamente utilizadas até hoje10. Esses instrumentos são fundamentais para o acompanhamento de diferentes marcos motores existentes na primeira infância e identificar sinais de alerta que podem trazer prejuízos para crianças e a necessidade de intervenção precoce, como desnutrição, maus tratos, doenças, síndromes e outras condições. Por isso, reforço sobre a necessidade sim, do acompanhamento dos marcos motores, no entanto, o desenvolvimento não é só isso. Quando existe um sinal de alerta de marcos que não foram atingidos em idades específicas, todo o contexto que a criança vive necessita ser investigado: os cuidados, a saúde da criança e o ambiente em que ela vive. Por fim, este texto é uma provocação para ampliar o olhar acerca do desenvolvimento motor.

Referências:

1. Gesell A, Amatruda CS. Diagnostico del desarrollo normal y anormal del niño. Hoeber PH, editor. Buenos Aires: Editorial Paidos; 1946. 402 p.

2. McGraw MB. Neuronal maturation of the infant as exemplified in the righting reflex, or rolling from a dorsal to a prone position. J Pediatr. 1941;18(3):385–94.

3. McGraw MB. The functions of reflexes in the behavior development of infants. Pedagog Semin J Genet Psychol. 1933;42(1):209–16.

4. Clark JE. Pentimento : a 21st century view on the canvas of motor development. Kinesiol Rev. 2017;6:232–9.

5. Connolly K. Skill Development: Problems and Plans. In: Connolly K, editor. Mechanisms of Motor Skill Development. London: The Develepmental Sciences Trust; 1970. p. 3–21.

6. Connolly K. Learning and the concept of critical periods in infancy. Dev Med Child Neurol. 1972;14:705–14.

7. Thelen E, Smith LB. Dynamic Systems Theories. In: Lerner RM, editor. Handbook of Child Psychology – Volume 1 [Internet]. 3. ed. New Jersey: Jonh Wiley & Sons, Inc.; 2007. p. 258–312.

8. Manoel EJ. Desenvolvimento motor: padrões em mudança, complexidade crescente. Rev Paul Educ Física. 2000;supl. 3:35–54.

9. Manoel EJ. Desenvolvimento motor. Dicionário Crítica da Educ Física. 2015;2:1–6.

10. Clark JE, Whitall J. What is motor development? The lessons of history. QUEST. 1989;41:183–202.

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